Por que o trabalho no Japão nos afeta psiquicamente?

Hoje em dia podemos dizer que a regra para quem trabalha no Japão é em algum momento da vida passar por sofrimento psíquico, seja ele insônia, depressão, ansiedade, delírios e por aí vai, uma lista infindável de diagnósticos psiquiátricos. Porém, muitos não entendem a relação que tudo isso tem com o trabalho.

 

Se você trabalha no Japão provavelmente já conheceu alguém que precisou recorrer à algum tipo de medicação, seja ela para dormir, para se manter acordado, para se animar ou para se acalmar. Provavelmente essas são as demandas mais comuns das pessoas que visitam os psiquiatras no Japão. No entanto, muita gente não faz a ligação desses fenômenos com o trabalho e, mesmo quando o fazem tendem a naturalizar e banalizar seu sofrimento.

Desde que o Japão criou o modelo de organizar o trabalho chamado de toyotista, inicialmente dentro das fábricas da Toyota, mas depois empregado em todo o mundo, muito mudou na forma de exploração do trabalhador. Antes do Toyotismo os trabalhadores exerciam funções com menor exigência, fosse ela no ritmo de trabalho, na quantidade de horas trabalhadas e na quantidade de serviços desempenhados.

Uma das principais características desse modo de trabalhar japonês é definido pela polivalência do trabalhador, ou seja, pode ser que ele opere mais de uma máquina ao mesmo tempo (sabemos que em alguns lugares as pessoas chegam a operar 4 máquinas ao mesmo tempo), ou saiba desempenhar vários trabalhos e circule dentro do seu setor produzindo várias coisas durante o dia, ou ainda, tenha a agilidade de adaptar as linhas para de uma hora para outra produzir algo diferente, e isso é aplicado na produção de carros à comida.

Por conta desse tipo de mudança drástica e repentinas há uma exigência muito maior do trabalhador, isso porque o toyotismo não trabalha com grandes estoques, logo, se produz de acordo com a demanda do mercado. Por exemplo, no caso da produção de comida isso fica mais evidente, também pelo fato da alimentação ser bastante perecível, a produção não é semelhante todos os dias, mas varia de acordo com as vendas, se em um dia se precisa mais de saladas, pode ser que no dia seguinte os trabalhadores precisem produzir mais refeições completas do tipo obentô. Por conta disso talvez ele precise entrar mais cedo no trabalho ou sair mais tarde, fazendo infindáveis horas extras de acordo com os pedidos das lojas. Nesse tipo de trabalho o que se exige é que se viva exclusivamente para o trabalho e para que isso seja possível várias técnicas de “gerência do trabalhador” são aplicadas.

Para que as empresas japonesas possam trabalhar dessa forma, sempre atendendo a demanda imediata do mercado, ela precisa contar com a disposição para o trabalho de seus funcionários, isso quer dizer que se ela precisar que ele trabalhe aos finais de semana ou até altas horas da noite ele terá que trabalhar, embora o trabalho forçado seja ilegal. Então, como fazer com que o trabalhador coopere? Essa resposta envolve algumas técnicas:

  • Redução dos salários por hora: se o salário for reduzido, isso significa que a pessoa terá que trabalhar mais para conseguir o dinheiro suficiente para passar o mês e dar conta as despesas. Como a maioria dos brasileiros vêm ao Japão para juntar dinheiro, esse é um outro aspecto que se leva muito em consideração. Caso você trabalhe somente durante o horário comercial, não alcançará seus objetivos materiais, te obrigando a fazer muitas horas extras;
  • Trabalhadores desunidos: a desunião dos trabalhadores é fundamental, pois nessa forma de organização toyotista os trabalhadores desempenham todo o processo de produção, caso tenham união facilmente podem parar as fábricas exigindo melhores condições de trabalho ou salário. Dessa forma, muito se faz para que não criem laços e uma forma muito efetiva para que isso aconteça é a proibição das conversas. Trabalhadores que conversam no ambiente de trabalho percebem que estão no mesmo barco e passando pelos mesmos problemas!
  • Manipulação dos sentimentos: essa é outra tática muito comum nas fábricas, seja pela forma objetificada de tratar o trabalhador, desqualificando suas ações, ou com superioridade pelos chefes, mas também através de chantagens emocionais ou colocando uns contra os outros propositadamente. Acreditem, isso é feito como estratégia organizacional.
  • Falta de organização institucional: logo que o modelo toyotista começou a ser empregado ficou muito claro que para dar certo seria imprescindível acabar com os sindicatos e, para que isso acontecesse, a Toyota financiou sindicatos pelegos, na tentativa de acabar com as organizações de trabalhadores. Até a década de 1970 o Japão viveu várias greves e reivindicação organizada dos trabalhadores, mas a ação da Toyota foi tão eficaz que hoje quase não ouvimos falar do apoio sindical.

 

Consequências

Para o trabalhador que se submete a esse tipo de trabalho as consequências sempre são sentidas. As mais concretas e fáceis de relacionar com o trabalho são as lesões pelo movimento repetitivo ou exesso de peso que atingem mãos, braços, coluna, joelhos e pés, mas também os acidentes de trabalho que acontecem dentro das fábricas, muitas vezes pelo excesso de cansaço do trabalhador.

Por outro lado, todo o sofrimento psíquico é desconsiderado pelas fábricas como consequência do trabalho, embora tenha ligação direta: insônia, falta ou excesso de apetite, desânimo, ansiedade, depressão, síndrome do pânico para falar dos sintomas mais comuns.

 

O que acontece no final?

Diante dessas situações o que é comum acontecer é o trabalhador brasileiro voltar ao Brasil para poder ter um tratamento de saúde. É dessa forma que o governo japonês, na ausência de qualquer apoio ao imigrante escancara ao que ele serve: ser explorado até a última gota e quando alguma doença aparece o envia de volta ao seu país de origem (ainda que isso aconteça de forma indireta). No entanto, tudo isso parece que são nossas escolhas e o fato de não aguentar esse ritmo de trabalho é motivo de vergonha para muitas pessoas.

Por conta disso, os estrangeiros também não entram nas estatísticas de problemas derivados do trabalho do governo japonês.

 

Há uma saída?

Para pensar em estratégias para lidar com esse problema complexo precisamos considerar vários aspectos:

  • Levar em consideração que o trabalhador não pode simplesmente deixar de trabalhar;
  • Saber que as condições materiais são necessárias para se levar a vida;
  • Considerar que mesmo nessa situação, muitas pessoas estão melhores financeiramente no Japão que no Brasil;
  • Se trabalhando a situação é difícil, sem trabalho ela pode ser ainda pior.

No entanto, temos verificado que a volta ao Brasil muitas vezes é marcada por muito sofrimento e em alguns casos chega-se ao suicídio.

As estratégias de saúde mental que propomos podem ser resumidas em dois aspectos:

  • Psicanálise: a psicanálise como suporte ao sujeito para recuperar seu desejo e sair da condição de “morto-vivo”. Esta última categoria a empregamos para designar o que a fábrica nos exige, que abramos mão de nossas vidas e estejamos completamente disponíveis para trabalha, já não somos mães ou pais, mulheres, casais, amantes ou amigos, somos apenas trabalhadores incansáveis à espera da próxima jornada e de nossos salários no final do mês. Perde-se a essência da vida e isso traz consequências intensas para nossa mente.
  • Alívio dos sintomas de forma que os quadros clínicos não sejam cronificados: para todos os sintomas que listamos aqui o tratamento mais comum são os remédios psiquiátricos, no entanto, essas medicações funcionam apenas por um período curto para em seguida tornar a pessoa dependente e cronificar os sintomas, isso significa que tratar qualquer sintoma psíquico somente com remédio não vai te curar e vai te deixar dependente. No entanto, podemos contar aqui no Japão com os produtos derivados da canabis para fim medicinal, que além de trazer alívio para o sofrimento mental, também age no organismo como um todo promovendo equilíbrio.

É sabendo que o trabalhador não tem saídas mágicas e que é preciso um certo tempo para se mudar as condições concretas de existência que propomos essas duas estratégias: o CBD (canabidiol) para o alívio de algo que já está insuportável e a psicanálise para subsidiar o sujeito no encontro de seu desejo e a saída definitiva dessa condição de exploração passiva.

O Amae Institute é um espaço de atendimento psicanalítico, formação e reflexão em Saúde Mental para brasileiros no Japão.

Realizamos atendimentos particulares por videoconferência.

Os valores das sessões de psicanálise são combinados caso a caso diretamente com o analista.

Também realizamos orientações para o uso do CBD.

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