Legado das Olimpíadas: cuidados hegemônicos em Saúde Mental são um desastre

Desde Naomi Osaka o assunto da Saúde Mental entre atletas tem pipocado. Depois dela veio Simone Bailes e agora Olivia Podmore, creio que em breve surgirão outros nomes, outras histórias do mundo dos esportes para escancarar o quanto fracassamos na nossa forma medicalizada de cuidados em Saúde Mental.

 

Você já se perguntou por que num mundo onde as pessoas tomam tanto remédios psiquiátricos, o sofrimento psíquico impera? Se você nunca se perguntou agora é a chance. Acabamos de passar pelas Olimpíadas de Tóquio, em plena pandemia, seu legado não foi o desenvolvimento econômico, a geração de empregos ou a melhoria da infraestrutura das cidades, mas escancarar que até mesmo aqueles nascidos para serem modelos da perfeição humana estão em frangalhos psiquicamente.

Esta questão nos remete diretamente ao que temos de padrão para cuidados em sofrimento psíquico, e quando digo sofrimento psíquico me refiro a todo tipo de diagnóstico psiquiátrico, seja ele depressão, ansiedade, bipolaridade, psicose entre tantos outros. Vivemos em uma sociedade que curiosamente tem na psiquiatria uma especialidade médica muito procurada, tanto a ponto de não dar conta da demanda e precisar compartilhar sua expertise com outros especialistas: você já foi a um clínico geral que te passou um ansiolítico? Ou talvez uma ginecologista ou cardiologista que diante de um choro ou de uma taquicardia te passou um “calmante”?

A popularização dos medicamentos psiquiátricos é algo que ganhou muita força nos últimos anos, e só foi intensificada pela pandemia e pela nossa percepção que o sofrimento psíquico é um problema que ocorre conosco independente da nossa vida, que é um problema na dinâmica das substâncias cerebrais, com seus hormônios e ligações neuronais. Tentamos transformar esse sofrimento peculiar em uma doença como as outras e, consequentemente, com a esperança de em um remédio produzir nossa cura. Mas a história é muito mais complexa.

Desde que os primeiros psicotrópicos foram descobertos pela indústria farmacêutica sabemos que eles não curam nada e que usados a longo prazo pioram os quadros clínicos, no entanto, temos uma crença popular da salvação através da pílula milagrosa que coloca tanto essa demanda sobre a psiquiatria, que responde exatamente deste lugar, como uma tendência reducionista em acreditar que a felicidade ou a depressão é controlada por uma substância específica no cérebro.

O fato de estarmos enganados ao tentar controlar nossos afetos através das substâncias cerebrais, não significa que diante de um acontecimento que nos afeta, mudanças no corpo não aconteça. Muitas pessoas quando passam por estresse ou situações críticas apresentam sintomas corporais. Tratamos aqui corpo-mente como fazendo parte da mesma dimensão, um como prolongamento do outro. No entanto, acreditar que somente uma ou poucas substâncias são as responsáveis pelo nosso humor e sofrimento é justamente desconsiderar nossa complexidade e trajetória, o que produzimos no cérebro diante do sofrimento faz parte de nós, mas não nos define, talvez essa seja a grande ilusão contemporânea.

Desconsideramos tudo que passamos no decorrer da vida para acreditar nessa doce ilusão. Como seria maravilhoso se diante da nossa total falta de esperança no mundo pudéssemos tomar um comprimido e viver bem, não é? Mas a vida não funciona assim.

 

Quando Naomi Osaka e Simone Bailes falaram abertamente sobre Saúde Mental e sobre a demanda específica dos atletas, não sabiam, mas estavam abrindo uma brecha para que todos pudessem se perguntar até que ponto estamos sofrendo desse mal-estar de forma generalizada. Mal estar da nossa contemporaneidade que agrega a demanda por ser o melhor em qualquer área, nossa própria cobrança como algo intrínseco de nos reconhecermos como indivíduos e nosso mal-estar medicalizado quando não damos conta dessa demanda.

Pequeno parênteses aqui: para a psicanálise essa demanda do Outro faz o sujeito abrir mão de seu próprio desejo, isso significa dizer que abrir mão dessa dimensão desejante nos faz alienados em uma instância de cobrança, passamos a sentir de forma intensa que não somos nada, que não servimos para nada na vida, que somos um resto. Se esse sintoma pode ser o ponto de virada na procura de uma análise pessoal, ele também pode ser o caminho que nos leva até a psiquiatria e toda sua parafernália medicamentosa que apaziguará  brevemente a angústia, sob a consequência de apagamento de si.

Se nos casos de Naomi Osaka e de Simone Bailes a Saúde Mental apareceu como um recuo para pensar a questão delas com as demandas do esporte, da sociedade e seja lá de onde mais, para Olivia Podmore não houve recuo, ao que tudo indica ela de fato concretizou seu suicídio, aos 24 anos.

Olivia era ciclista, nascida na Nova Zelândia, participou das Olimpíadas do Rio de Janeiro em 2016, mas não se qualificou para as Olimpíadas de Tóquio. Foi encontrada morta em sua casa, nas redes sociais deixou um pequeno desabafo sobre o sentimento aniquilante quando se perde no mundo dos esportes. No pequeno texto ela expressa seu sentimento de não ter atendido a expectativa do outro e como isso era insuportável para ela.

As notícias do sofrimento psíquico entre os atletas de alto nível faz cair por terra a famosa a citação latina tão conhecida “Mens sana in corpore sano”, ou seja, mente sã em corpo são, que no mundo contemporâneo enfatiza o quanto cuidar do corpo pode nos proporcionar uma boa saúde psíquica. A frase foi aliada à indústria do bem-estar, uma das que mais lucra no mundo, vendendo estilos de vida e, claro, vendendo produtos para que nos identifiquemos com essa vida que parece leve, longe das preocupações quando fazemos nossa yoga e meditação, mas que no fundo não é mais do que uma estratégia de um pequeno alívio para que possamos suportar a exploração intensificada das últimas décadas.

Embora algumas alternativas sempre tenham existido para lidar com o sofrimento, a medicamentosa é o que reina e é preciso que saibamos o que estamos consumindo e fazendo com nossas vidas quando recorremos às medicações. Se num primeiro momento ela pode ser um alívio, proporcionando uma noite de sono reparador para quem não dorme há dias, ou um pouco de alívio da angústia, a longo prazo as medicações têm um grande efeito cronificante, isso significa que ela não te devolverá para a vida como você a conhecia antes e que o mal estar permanecerá com nova roupagem, sendo que para muitas pessoas ele pode tornar-se mais insuportável que no início, quando se agrega a dependência química dessas medicações.

O que as medicações psiquiátricas têm causado nas pessoas é algo bem conhecido, hoje temos grupos que se apoiam para se recuperar dos tratamentos medicamentosos, grupos que se denominam como “sobreviventes da psiquiatria”.

Em resumo: as medicações psiquiátricas podem ser úteis em situações pontuais, mesmo assim, elas não são o melhor recurso quando pensamos em Saúde Mental. Algo precisa ficar claro: elas não representam a cura. Quando o sofrimento aparece precisamos pensar em estratégias que envolvem a fala, a arte, o apoio de outras pessoas e a ressignificação da vida. Nessa trajetória, que não é fácil, só o sujeito pode encontrar sua saída, e ela não virá com o amortecimento de si mesmo.

 

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